Homilia proferida pelo Frei Vicente na Missa da Santíssima Trindade. Vale a pena relembrar/refletir.
Os opostos são essenciais
“Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando- os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo”
Creio que a festa da Santíssima Trindade é um tanto quanto estranha para nós, porque até o momento ainda não conseguimos vivê-la. Para entender ou proclamar a Trindade como dogma de fé, a Igreja demorou muito tempo. Foi em 325 a primeira vez que se falou nessa questão, que só foi definida em 395, ou seja, 70 anos depois. Até o fim do terceiro século depois de Cristo, quem não acreditava na Santíssima Trindade era naturalmente considerado católico. A Trindade é uma questão teológica vivencialmente ainda não resolvida.
Quem acredita que o NÓS é mais importante que o EU?
Sempre nos referimos possessivamente: minha casa, meu filho, meu carro, minha namorada, minha terra, minha profissão, meu dinheiro, tudo é meu! O NÓS vem sempre depois. O que vivemos coletivamente é a descoberta do EU, e não a descoberta do NÓS. A ciência nos ajudou a fazer isso. Nos últimos 400 anos descobrimos quase todos os mistérios da vida e destrinchamos cada vez mais minúcias da última partícula da existência. Agora quanto ao entendimento da relação entre essas partículas, continuamos analfabetos de pai e mãe. Nenhuma ciência conseguiu ainda avançar significativamente na questão relacional. A sociologia é uma das ciências mais novas e, portanto, das menos elaboradas para poder sustentar a humanidade.
O dogma cristão é o relacionamento, o Deus Trino que é para nós ainda desconhecido. O que está na moda é o autoconhecimento. Quanto aos relacionamentos, ninguém se atreve muito a querer conhecer. Estacionamos no mistério mencionado por Santo Agostinho.
Apenas alguns aspectos dos relacionamentos estão ficando mais claros. Um dos princípios do relacionamento conforme as ciências exatas é que só é possível um relacionamento entre polos opostos. Para que uma lâmpada se acenda é necessário um pólo positivo e um negativo, colocados a uma distância correspondente para que a energia que passa de um polo para outro seja enxergada como luz. Dois polos positivos, se aproximados, serão engolidos um pelo outro; serão atraídos até explodirem. Dois polos negativos se afastam tanto que não podem gerar a luz. Se é verdade também para outras áreas, além da energia da luz, por que brigamos tanto quando nossos companheiros mostram-se opostos? Por que insistimos tanto para que os nossos opostos se tornem iguais a nós?
Será que não percebemos que quando o outro se torna igual a nós, pensando e desejando como nós, vamos terminar nos engolindo uns aos outros antropofagicamente e acabaremos com a relação? O mesmo também acontecerá com a união entre polos negativos, que se afastarão tanto, que a quilômetros de distância, também não poderão estabelecer uma relação. Uma relação só pode ser mantida quando cada uma das partes se torna cada vez mais si mesma, cada vez mais o polo necessário à relação.
Por exemplo, se porventura neste momento sou o polo positivo da relação aqui estabelecida, só quem conseguirá me entender é quem é o polo negativo. Quem também é polo positivo não entenderá nada do que eu estou dizendo. A primeira coisa da qual devo abrir mão é de querer que todos aqui me entendam. Se todos me entenderem é porque algo está errado. Certamente metade das pessoas me entenderá, enquanto a outra metade não. É assim que as coisas acontecem apesar da nossa onipotência de querer que a unidade seja unanimidade. Querer a unanimidade significa desejar uma sociedade morta. As relações vivem por meio de opostos. Os opostos são essenciais e, quanto mais diferente pensarmos, mais energia fluirá, mais vida acontecerá e mais criativa se tornará a relação.
Portanto, quando sentarmos com um grupo em um barzinho para tomar chope, provoquemos os opostos, não os apaguemos nem os enquadremos no nosso tamanho. Não que o nosso tamanho não seja bom, mas ele não pode ser o único. Existem outros tamanhos possíveis, outras maneiras de relacionamento, e queiramos sim, queiramos não, nenhum de nós é neutro. A neutralidade é uma ilusão. Por mais que pronunciemos o som “OM..OM”… não nos tornaremos neutros. Podemos nos tornar monges budistas dos mais aplicados e não conseguiremos ser neutros.
Não estou falando mal dos budistas, pelo contrário, quanto mais pronunciarmos “OM”, mais seremos capazes de retomar a nossa própria energia e o nosso posicionamento e tanto mais deixaremos de ser neutros. Nós temos um lado, uma energia que nos marca e nos posiciona, à qual precisamos nos ligar e assumir, sem acreditar que não podemos ser contrariados.
“Ah, mas eu não gostaria de casar de branco, de véu, nem com todas essas coisas. Gostaria de me casar numa capelinha, sem flor, sem nada, mas não posso porque senão mamãe não aprova, porque senão o que é que vão dizer os outros?” Deixa os outros falarem, o casamento é seu e não deles! Estou falando isso porque foi assunto essa semana. Deixa que falem e que digam, assuma a sua posição mesmo que crie fofoca, pois criar fofoca pode provocar energia. Onde ninguém provoca nada a energia se torna menos presente.
Esta homilia não pode mudar ninguém, mas se a nossa energia mudar, será possível mudar alguma coisa. Então, coloquemos a nossa energia de maneira a provocar as mudanças que gostaríamos que acontecessem. Será que sabemos que mudanças gostaríamos que acontecessem? Se queremos nos expandir precisamos de um polo positivo e outro negativo.
Quando será que tomaremos a atitude interior de, por exemplo, permitir interiormente que a nossa filha case e vá embora viver a vida dela, não mais a vida colada à nossa? Nascem os netos, viramos vovós corujas para manter todos ao nosso redor. Atitudes externas são uma coisa, e atitudes internas são outra. Se quisermos mudar as coisas que acreditamos serem erradas neste mundo, precisamos mudar os fluxos energéticos que só podem ser mudados se nós mudarmos. Não é possível modificar fluxos energéticos no outro, a não ser modificando-os em nós mesmos.
O convite da Santíssima Trindade é que comecemos a observar onde está o nosso coração, ou seja, a nossa energia. Que percebamos se realmente está mudando, se não, não conseguiremos mudar e continuaremos a construir o EU isolamento e não o EU relação, o que fatalmente resultará no sintoma conhecido como depressão. Se realmente quisermos expandir a nossa energia, devemos expandí-la permitindo que o outro possa ser por ela tocado, enquanto continua sendo ele mesmo, e não querendo que seja como nós.
Palavras finais
Quando encontrarem a sua alma gêmea, fujam dela como o diabo foge da cruz, porque mais cedo ou mais tarde irão se engolir. Procurem alguém que seja o seu oposto. É claro que terão muito mais trabalho, mas também terão muito mais significado para suas vidas.
Frei Vicente (Paróquia Santo Antonio - Brasília, DF)
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